Ekadaśi – O jejum indiano

Introdução

Nos últimos tempos, com a ascensão do Ayurveda em terras ocidentais e com a consequente maior divulgação de movimentos religiosos que, antes dos anos 60, eram mais restritos ao subcontinente indiano, vemos mais e mais conteúdos falando sobre o Ekadaśi, esse jejum muito comum nas religiões vaishnavas.

Em primeiro lugar, é importante falarmos sobre o que é o Hinduísmo. Hindu é como os persas chamavam os povos que habitavam para além do rio Indo. Incapazes de pronunciar corretamente o nome do rio – Sindhu -, os persas alteraram a palavra para Hindu e assim ficou. Dessa forma, originalmente, o termo “hindu” era usado como gentílico, não como designação religiosa.

Com o passar do tempo, também os cultos dos povos que viviam para além do rio Indo foram sendo chamados de religiões hindus ou cultos hindus. Milhares de anos depois da invasão persa, os britânicos tomaram para si o território de Bharat (como os indianos chamam a Índia) e, a fim de entender os ritos praticados pelos habitantes do lugar, colocaram tudo sob o termo guarda-chuva “hinduísmo”. Sendo assim, o que chamamos de Hinduísmo é, em verdade, um rol imenso de práticas religiosas e espirituais muitas vezes conflitantes entre si, cada qual com sua própria interpretação das escrituras, sejam particulares de cada culto, sejam comuns a muitos deles. O termo é tão genérico que diferentes entendimentos religiosos dentro do “Hinduísmo” apontam para Deidades diversas como Deus/Deusa Supreme. Mesmo a estrutura de culto é diversa, sendo uns politeístas e outros monoteístas, de rituais completamente divergentes entre si.

Obviamente a terminologia usada pelos britânicos causou uma imensa confusão no Ocidente sobre o que de fato é Hinduísmo. De forma genérica, explico: é a palavra que comporta (não somente) as quatro principais denominações religiosas no subcontinente indiano: o vaishnavismo (ou vishnuísmo), o shaivismo (ou shivaísmo), o shaktismo e o smartismo (ou smarta). Cada uma dessas denominações possuem suas subdivisões que divergem entre si sobre a interpretação das escrituras e mesmo sobre quais livros são ou não canônicos. Assim, são cultos muito diferentes entre si, mesmo dentro da mesma denominação. Algo semelhante acontece no Ocidente com o Cristianismo.

O Vaishnavismo é, até onde vai meu pouco conhecimento no assunto, a origem do jejum de Ekadaśi. As outras denominações hindus também tem seus jejuns, embora eu não saiba o nome deles (é coisa demais para uma pessoa só estudar!). O surgimento do jejum de Ekadaśi está descrito no 14º capítulo do Padma Purana, uma passagem da escritura sagrada que narra a criação por Śri Vishnu de uma criatura que incorpora todos os pecados do mundo, chamada Papapurusha. Para punir as criaturas que acabavam caindo nos pecados descritos em cada parte do corpo de Papapurusha, o Senhor Vishnu cria o Senhor Yamaraja, que julga e destina as almas aos corpos e orbes inferiores. Certa vez, ao visitar o Senhor Yamaraja, Śri Vishnu ouviu os choros e lamentações das almas punidas e, compadecendo-se delas, criou, de sua própria forma, Śri Ekadaśi, uma Deidade que é o próprio dia de Ekadaśi. Você pode ler a história completa clicando aqui.

Cada Ekadaśi tem um tema diferente, com uma história diferente e traz méritos ligeiramente distintos um dos outros. Em determinados Ekadaśis, alimentos que são proibidos ficam permitidos, como no Sat-Tila Ekadaśi, que permite o consumo de gergelim. Você pode ler todas elas clicando aqui.

Benefícios do Ekadaśi

Ekadaśi, como diz o nome (Ek = um; daś = dez), é o 11º dia a partir da Lua Nova e o 11º dia a partir da Lua Cheia, ou seja, são dias nos quais a Lua forma aspectos astrológicos importantes. Como os dias se alternam de forma pouco regular para nosso calendário solar, recomendo consultar um calendário vaishnava confiável para saber o dia correto de jejum e o horário correto para quebrar o jejum (consumindo algum grão ou algo feito de grãos). Atente-se ao local porque cada cidade tem um horário diferente, seja para início, seja para término do jejum. Recomendo o calendário do site Pure Bhakti, que é muito confiável.

O objetivo do jejum de Ekadaśi é a limpeza física e espiritual, eliminando toxinas e karma negativo, além de energias nocivas. Não é necessário ter uma sensibilidade muito aguçada para sentir os efeitos energéticos do jejum de Ekadaśi, principalmente no dia seguinte. A sensação de leveza e bem-estar é bastante perceptível.

“Krsna, Seu nome e Ekadaśi podem realizar todos os nossos desejos, e até mesmo conceder Vraja-prema (amor puro por Krsna no humor dos Vrajavasis).”

Srila Bhaktivedanta Narayana Gosvami Maharaja (em 5 de junho de 1998)

A justificativa ayurvédica, bem resumidamente, é de que os grãos absorvem muita água do organismo. A Lua, por sua vez, com sua atuação no movimento das marés, está ligada ao fluxo de água no corpo humano. O 11º dia a partir da Lua Nova ou da Lua Cheia são dias nos quais há maior eliminação de água do corpo e, com o consumo de grãos, mais água é absorvida, deixando o corpo vulnerável para o surgimento de doenças e para a obesidade devido ao acúmulo de toxinas.

O professor Valter Longo, diretor do Instituto de Longevidade da Universidade do Sul da Califórnia e do Programa de Longevidade e Câncer do Instituto IFOM de Oncologia Molecular em Milão reduziu em 40% o consumo de calorias de um grupo de estudantes durante um experimento que durou quinze dias. Como resultado, os estudantes obtiveram uma melhora significativa em seu sistema imunológico, porém relataram sentir fraqueza devido às mudanças drásticas na dieta e, assim, acabaram voltando aos hábitos alimentares anteriores.

O professor continuou investigando uma maneira de manter os benefícios sem causar o quadro de fraqueza e chegou à conclusão de que bastava um jejum completo, de água e comida, durante trinta e seis horas a cada quinze dias para que o sistema imunológico apresentasse o incremento (exatamente o período previsto para o jejum de Ekadaśi). O jejum funciona como “interruptor regenerativo”, estimulando a produção de leucócitos no organismo.

Ao prolongar a sensação de fome, o corpo começa a reciclar células que não são mais necessárias, num processo chamado “autofagia”. Esse processo foi pesquisado pelo Nobel em Medicina Dr. Yoshinori Ohsumi, que demonstrou que o sistema imunológico é capaz de se regenerar através do jejum.

Mais estudos vêm sendo feitos, demonstrando muitos benefícios, como rejuvenescimento, aumento da autoestima, eliminação de depressão, prevenção e cura de doenças, etc.

“Quando jejuamos, doshas (os ‘elementos’ que compõem o corpo) voltam ao equilíbrio, o fogo digestivo é potencializado, o corpo e a mente são equalizados e voltam à normalidade. Ganhamos leveza física, apetite rejuvenescido, pele saudável, disposição prazerosa, boa digestão e ao mesmo tempo: força e vigor”.

(Ayurveda: Astangahrdayam 1.3)

A obesidade, segundo a filosofia vaishnava, é um fator que atrapalha práticas espirituais, como a meditação e a castidade, interferindo maleficamente no fluxo energético e provocando o aparecimento de muitas doenças. Segundo os ensinamentos dos Acaryas, como Srila Bhaktivedanta Swami Prabhupada, o excesso de comida e gordura pressiona o aparelho genital, promovendo acúmulo energético e impulsionando a atividade sexual. Sendo assim, não é aconselhado que pessoas que queiram preservar a energia sexual para fins meditativos de ascensão da kundalini fiquem ou permaneçam obesas. O controle do peso corporal e percentual de gordura é importante na Yoga.

Assim, durante e depois do jejum, é possível perceber uma maior ocorrência de evacuações. Isso é normal pois significa que seu corpo está eliminando o que precisa ser eliminado. Mas tome cuidado: se você começar a se sentir mal, apresentando tonteiras, calafrios, tremores e forte sudorese, pode significar que você está tendo hipoglicemia (falta de glicose). Se esse for o caso e você não quiser quebrar o jejum antes da hora, o que faz perder todo o progresso obtido, coma bananas e frutas bastante doces. Algumas marcas produzem boas goiabadas que podem ser usadas para eliminar o quadro hipoglicêmico sem quebrar o jejum de Ekadaśi, contudo fica o aviso: sempre leia o rótulo.

“Jejuar no Ekadaśi traz limpeza dos órgãos dos sentidos e do funcionamento motor, adequada excreção de toxinas, fome e sede governáveis, purificação do pericárdio (coração e membranas cardíacas), relaxamento da tensão corporal, aumenta a alegria, diminui ansiedade e apatia”.

(Ayurveda: Sutrasthanam 14.17)

Instruções para jejuar corretamente

Os alimentos que devem ser evitados são: grãos e cereais, tais como arroz, feijão, café, soja, milho, cominho (algumas fontes divergem, mas é melhor evitar), mostarda, ervilha, noz moscada, grão-de-bico, trigo, cardamomo, erva doce, cevada, quinoa (aqui também há divergência, mas evite, se puder) etc. Grãos partidos ou processados também não são permitidos, tais como farinhas de trigo ou milho, proteína de soja, lecitina de soja, amido de milho, fermento químico (por conter amido de milho), margarina (por conter lecitina de soja), fermento biológico, bicarbonato de sódio e açúcar refinado (esses dois, algumas vezes podem ser “diluídos” com farinha de arroz ou o processo de fabricação usa químicos advindos de grãos).

Carne (de todos os animais), peixe, ovos, bebidas alcoólicas, cigarro e drogas (aquelas não receitadas por médicos e as ilícitas), alho, cebola, cenoura e lentilha são proibições naturais aos vaishnavas então, de maneira natural, não são comidos nunca, ainda mais num dia de Ekadaśi.

Também não são permitidas folhas verdes e ervas finas, tais como agrião, alecrim, alface, alfafa, brócolis, chá, coentro, couve, espinafre, hortelã, manjericão, salsão, salsinha, tanchagem, etc. Mel e canela em pó também devem ser evitados. Papoula é outro item que fica fora do dia de Ekadaśi.

Alguns outros alimentos também ficam fora do cardápio nesse dia. São eles: beterraba, berinjela, couve-flor, palmito, pimentas (dedo-de-moça, biquinho, de cheiro e semelhantes), pimentão, tomate, etc. Cogumelos também não podem ser ingeridos.

Agora vamos ao que pode ser consumido: água (se seu jejum não for nirjala, ou seja, sem água), frutas cruas, assadas, cozidas ou caramelizadas com açúcar demerara (uma vez que o açúcar refinado também não deve ser consumido), incluindo abóbora (exceto a de casca branca); oleaginosas, tais como nozes, castanhas, amendoim, sementes de abóbora e de girassol; batatas e outras raízes, tais como mandioca, inhame, cará, etc.; caldo-de-cana, açúcar demerara e mascavo; laticínios, como leite fresco (longa vida ou outros industrializados estão fora da lista por conter pus da vaca devido aos processos cruéis de ordenha), ghee (manteiga clarificada), queijo sem coalho e sem glúten.

Também são permitidos gengibre raiz fresco, cúrcuma raiz fresca, pimenta-do-reino moída na hora, azeite de oliva extra virgem (cuidado com azeites misturados com óleo de soja), óleo de girassol, óleo de algodão, óleo de amendoim, óleo de coco, azeitonas, chá de frutas, canela em pau (há divergências entre as fontes), trigo sarraceno, farinha de mandioca pura, tapioca pura, polvilho doce e azedo.

Há receitas especiais para Ekadaśi que você pode elaborar com os ingredientes permitidos, mas é interesssante que, durante o jejum, haja foco em alimentos frescos e em estado natural, cozinhando o mínimo possível.

As ações não permitidas em Ekadaśi são: atividade sexual, masturbação, assistir a filmes eróticos, palavras de baixo calão ou conversas inadequadas (recomenda-se o silêncio e, principalmente, o canto de mantras como jejum também de palavras. Você pode recitar orações da sua religião ou Salmos, se você for seguidor do Judaísmo ou Cristianismo), ler livros eróticos, ouvir músicas inadequadas e/ou eróticas, vídeos ou filmes violentos ou sobre política, qualquer atividade que traga ira, ganância, luxúria, soberba, inveja, avareza e gula (principalmente). Não é recomendado se empanturrar das comidas permitidas porque, assim, você estará ferindo o propósito de um jejum, que é comer o mínimo possível. Nesse dia, não se envolva em atividades de jogos de azar, como loterias, jogo do bicho, etc.

Modalidades de jejum

Há diversas maneiras de vivenciar o jejum de Ekadaśi. A mais branda delas é cumprir como descrito acima, se alimentando com moderação do que é permitido, mas há maneiras mais intensas.

  • Uma delas, a que eu gosto de fazer, é o jejum de comida até o meio-dia e, a partir daí, o consumo dos alimentos permitidos.
  • Pode-se também evitar o consumo de comida e água até o meio-dia e, a partir daí, está liberado o consumo de água e dos alimentos permitidos.
  • O jejum nirjala é o mais forte deles. A potência desse jejum é imensa, mas a dificuldade de cumpri-lo é na mesma proporção. Eu já o fiz duas vezes e, na terceira, passei muito mal. Pelas circunstâncias, fui obrigado a quebrar o jejum, de forma que nunca mais o tentei. Trata-se do jejum sem água (nir = sem, jala = água), ou seja, passa-se todo o dia de Ekadaśi sem comer ou beber qualquer coisa. Não recomendo essa modalidade de jejum, a não ser que vocêesteja muito bem treinade e já tenha feito todas as outras modalidades dispondo a dificuldade de maneira gradual. Recomenda-se ficar em casa durante o jejum nirjala e não trabalhar, ocupando-se apenas de meditação, leitura de livros sagrados e canto de mantras. A atividade de trabalho durante o jejum nirjala pode ocasionar em fraqueza e quadros de hipoglicemia e, assim, a obrigatória quebra do jejum antes do tempo, perdendo todo o benefício conseguido.

Vivenciando num templo

Você pode vivenciar o jejum na prática em templos vaishnavas (templos Hare Krishna são um exemplo). Lá, todas as refeições preparadas no dia de Ekadaśi são feitas com alimentos permitidos. Você também será convidado a assistir uma palestra sobre algum tema da literatura védica e a cantar mantras que lhe permitirão entrar numa conexão espiritual intensa. Recomendo a experiência.

Você também pode pesquisar mais informações sobre o jejum de Ekadaśi em sites vaishnavas na internet. Eu recomendo o Vana Madhuryam e o Bhakti Yoga Pura.

Quebrando o Jejum

Se você consultou o calendário vaishnava, percebeu que há um período correto para quebra de jejum no dia seguinte ao Ekadaśi (geralmente chamado de Dvadaśi). Dentro desse horário, deve ser entoado o mantra descrito na imagem abaixo e, então, o jejum pode ser quebrado ao tomar água (se seu jejum foi nirjala) e comendo algum alimento que contenha grãos. Assim, você preserva os méritos espirituais do jejum de Ekadaśi.

Você pode, também, fazer o jejum para alguma pessoa. No momento da quebra, mentalize essa pessoa, ofereça para ela os méritos do jejum e entoe o mantra de quebra do jejum. Logo após, consuma algum alimento que contenha grãos. Se você conhece alguém que esteja doente ou que faleceu, você pode oferecer o jejum para que essa pessoa tenha pronta recuperação ou que consiga uma próxima vida mais auspiciosa.

Fontes

Bhakti Yoga Pura

BV Mahavir Maharaj

Dharma Lindo

Ekadasi e Receitas Lácteo Vegetarianas (grupo do Facebook)

Iskcon Bahia

Krsna FM

Metrópoles

Vana Madhuryam TV

Veja

Escrito por ocasião de Sat-Tila Ekadaśi.

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